Série Mario Quintana


Se eu fosse um padre


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

*****

Tenta esquecer-me

Tenta esquecer-me... Ser lembrado é como evocar
Um fantasma... Deixa-me ser o que sou, 
O que sempre fui, um rio que vai fluindo... 
Em vão, em minhas margens cantarão as horas, 
Me recamarei de estrelas como um manto real, 
Me bordarei de nuvens e de asas, 
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se... 
Um espelho não guarda as coisas refletidas! 
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar, 
As imagens perdendo no caminho... 
Deixa-me fluir, passar, cantar... 
Toda a tristeza dos rios 
É não poder parar!

*****

Querias que eu falasse de "poesia"

Querias que eu falasse de "poesia" um pouco
mais...e desprezasse o quotidiano atroz...
querias...era ouvir o som da minha voz
e não um eco - apenas - deste mundo louco!

Mas quê te dar, pobre criança, em troco
de tudo que esperavas, ai de nós:
é que eu sou oco...oco...oco...
como o Homem de Lata do "Mágico de Oz"!

Tu o lembras, bem sei...ah! o seu horror
imenso às lágrimas...Porque decerto se enferrujaria...
E tu...Como um lírio do pântano tu me querias,
como uma chuva de ouro a te cobrir devagarinho,
um pássaro de luz...Mas haverá maior poesia

do que este meu desesperar-me eterno da poesia?!

*****

O Auto-Retrato

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!

*****

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


(Mario Quintana)


by

Mel